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Os esqueletos da BatCaverna

  • Thaís Raquel, Sarah Bemerguy Côrtes
  • 26 de ago. de 2017
  • 9 min de leitura

Comunidade nerd enfrenta preconceitos revelados em discussões e em grupos das redes sociais

Evento de cultura nerd/otaku em Belém. - Foto: Breno Costa (Nerds Paraenses)

“Não posso dar essa promoção para ele. Todos sabem o motivo", explica o diretor executivo de uma revista. "Por quê?", insiste seu diretor de marketing - "porque, apesar de competente, ele ainda não terminou de crescer. Você já viu essas coisas todas de super-heróis que ele publica no Facebook? E aquele mousepad do Mario Bros?" Baseados em depoimentos e entrevistas, montamos um perfil da parte obscura de ser um nerd (ou geek) em Belém. Conversamos com diversas pessoas de grupos distintos, que residem ou já residiram na capital paraense. Essas pessoas, porém, pediram para não serem identificadas pois, sendo a comunidade nerd-geek na cidade relativamente pequena, a identificação deles seria imediata e as consequências, ruins. Um geek declarou ter medo de ser demitido, outro teme que sua família se sinta ofendida por ser exposta. Os anos passaram, os tempos mudaram, a sociedade amadureceu. Tudo isso é verdade. Mesmo assim, o relato acima é real. Os motivos são inúmeros e cuidadosamente ocultos por trás da popularização da cultura nerd e geek nos últimos anos. É inesperado, certo? Afinal, o geek é a última moda, os filmes e séries deste universo são um sucesso retumbante. “O nerd é o novo in” deixou de ser o socialmente isolado para assumir um papel de destaque nas redes sociais. Será?

Nada elimina o preconceito, nada reformula assim, em duas décadas, filtros cuidadosamente montados e refinados ao longo de 50 anos. Ao mesmo tempo em que os produtos e serviços nascidos da cultura nerd-geek são os mais diversos e populares, aqueles que realmente são parte dessa cultura são silenciosamente, e com incrível sutileza, afastados, enviados para o mundo do Sonhar (Os nerds entenderão). "Muitos agem como se, por ser geek, eu vivesse numa dimensão alternativa. Isso faz com que ignorem minha opinião em assuntos sérios e, como sou advogada, isso me prejudica. Fui obrigada a remover todos os vestígios das minhas preferências do meu escritório e das minhas postagens públicas nas redes sociais, para conseguir manter a confiança dos meus clientes", relata uma advogada bem-sucedida. Já existem grupos nerd que discutem ativamente se devem persistir no orgulho Nerd ou se devem passar para o anonimato novamente. Um exemplo disso é que, dos grupos no Facebook de nerds em Belém, apenas o Nerds Paraenses é público - há vários outros que são fechados e os secretos, os quais não podemos mensurar.

Há quem diga que a raiz de todos os preconceitos do mundo contra os nerds e geeks é o próprio mundo nerd - infelizmente, a atmosfera da cultura nerd ainda é mais machista e segregadora do que a nossa sociedade brasileira. Um exemplo disso são as dezenas de jogadoras extremamente talentosas que jogam on-line com nicknames e IDs masculinos, microfones e vídeos desligados - tudo para evitar ser assediadas e maltratadas. Uma gamer de 26 anos, 10 de jogos on-line, contou algo no mínimo curioso: “Há dois anos”, disse a jovem, “decidi que ia enfrentar o machismo dos gamers de frente. Criei uma nova conta, com meu nome real, foto, nick feminino, tudo bonitinho, mas me arrependi em 3 dias. Eu era alvo de emboscadas, os caras não queriam fazer acordos nem parceiras comigo, faziam de tudo para me atrasar e me xingavam quando ganhava uma batalha deles. Isso doeu no meu ego, jogo melhor que a maioria deles, e já tinha jogado com aqueles caras várias vezes. Eles eram a minha equipe mas, quando descobriram que eu era mulher, me excluíram, me boicotaram. Resultado: cancelei aquela conta e voltei a jogar com nick masculino, com a foto de perfil do meu irmão, sem áudio e vídeo. Eu preciso me proteger”.

Além disso, ela também relatou uma experiência acadêmica frustrante. Estudante de antropologia, decidiu analisar as interações entre os jogadores em seu jogo de guerra favorito, Battlefield. Ao relatar isso ao professor que deveria orientá-la, recebeu a sugestão delicada que ela analisasse um jogo mais “light”, mais adequado a uma mulher. Aqui, o preconceito contra os nerds se mistura com o machismo, cria um combo monstruoso que já resultou em muitas agressões: em eventos que fazem concursos de cosplay, não são raros os casos de homens que representam personagens femininas e acabam seriamente feridos, agredidos ora pelos próprios amigos, ora por pessoas que nem sabem o que significa cosplay, ora por homens que não admitem a figura do feminino em um homem. Também são censuradas (mas em uma porcentagem bem menor) algumas mulheres que fazem versões femininas de personagens masculinos, como lady Loki, ou lady Thor, cosplayers muito populares há alguns anos.

A indústria do entretenimento tem se esforçado para explorar esse filão cultural, e tudo o que remete a nerd-geek custa caro. Entre o amor pelos quadrinhos e os universos cinematográficos, as séries e os livros, é um público que gasta bastante em originalidade e qualidade, já que a ampla maioria dos nerds e geeks pertence a parcela da população que mais estuda e, consequentemente, tendem a desenvolver uma maior consciência sobre pirataria. Logo, não costumam adquirir produtos piratas. Muitos já nem compram livros e HQs físicos (impressos): adquirem os e-books, como forma de poupar espaço em casa para outros objetos não-digitalizáveis. Um professor de história muito nerd (mais uma vez, os nerds entenderão) entende que “a cada dia a indústria de massa lucra mais com o mundo nerd-geek, porque nós damos prioridade à qualidade sobre o preço, porque nós fazemos coleções. Então você dificilmente vai achar um nerd que nunca comprou um item de colecionador, ou um geek que não tenha roupas e acessórios oficiais das sagas e personagens que admira. Faz parte do nosso perfil”. Lojas como a Saraiva já entenderam esse potencial: em Belém, a loja dispõe de um espaço para eventos literários – porque nerds também leem muito, não apenas quadrinhos e jogos –, sessões de RPG, entre outros eventos direcionados ao público nerd-geek. Sites como o Wish tem plataformas separadas especializadas nesse público.

Itens de coleção nerd. Foto: Diego Borges

As reclamações sobre como a indústria de entretenimento pode ser racista, machista, homofóbica e outros “istas” são muitas e crescentes. Alguns famosos, artistas que protagonizam filmes nerd-geek como Robert Downey Jr., têm tentado minimizar esses efeitos, e espera-se que em breve não haverá mais esses problemas no cinema, e as obras serão o mais inclusivas o possível. Nos quadrinhos, a inclusão de gênero começou antes, como o fato de que, no universo DC, as mulheres costumam ter poderes mais incríveis que os homens. Mas o meio nerd ainda é muito machista. Veja o que aconteceu com as novas Caça-Fantasmas: uma mistura volátil de machismo com nostalgia sem sentido tornou o seu trailer um dos mais negativados no Youtube. E essa é apenas uma ocorrência, se falarmos de todas as reclamações sobre mudanças de sexo de personagens para minorias, empresas de jogos colocando mais roupas em personagens antes sexualizadas ou reclamações sobre mulheres roubando o protagonismo de homens (WTF?!) perderíamos o foco.

A dinâmica do universo nerd-geek levou, inconscientemente, o resto do mundo a não levá-los tão a sério. Mesmo com campanhas como “O nerd de hoje é o seu chefe de amanhã”, se você escrever na barra de pesquisa do Google “nerds são” a primeira sugestão que aparece é “nerds são chatos”. A razão por trás disso é simples: os nerds se levam muito a sério, e existem aqueles nerds “posers”, que apenas apresentam a imagem e não são nada nerds, mas que abusam de uma postura estereotipada e egocêntrica. Essa é a principal reclamação dentro dos grupos nerds: o mundo não leva os nerds tão a sério porque existem haters e posers fazendo o seu melhor para levar a sociedade a prorrogar o exílio nerd. “É quase como declarar que tenho uma doença mental. A partir do momento que o cliente descobre que amo o universo nerd-geek, ele começa a fazer mais e mais perguntas, como se meu trabalho pudesse ser prejudicado pelas minhas preferências”, contou um fotógrafo de eventos de Belém. “Parece, às vezes, que vou fazer as fotos deles parecerem registros de eventos nerds. Já aconteceu da noiva me dizer que não queria parecer uma ‘menina de anime’, pedir para que eu fizesse as fotos o mais clássicas que eu conseguisse”.

Parece até estranho quando tantos salvam e usam as fanarts como papel de parede do celular. São polos opostos, no final: aqueles que não levam os nerds a sério versus aqueles que consideram os nerds a melhor coisa que já aconteceu com suas empresas. Uma analista de currículos da cidade conta que, apesar de não ser nerd ou geek, faz parte de um grupo fechado de nerds em Belém. Ela declarou que está em vários grupos de nerds porque os considera mais responsáveis que a maioria dos jovens. “Os jovens nerds que trabalham para mim não costumam me dar dor de cabeça, aparecer de ressaca, atrasar-se. Passei a verificar se os meus candidatos são nerds. Hoje isso faz parte do meu critério - não oficialmente, é verdade, mas faz.”

Os maiores expoentes de tecnologia, por exemplo, são nerds. Os produtos nerds vendem muito, são populares e abrangem diversas tecnologias e áreas - isso foi considerado na criação do programa Zero 1, produzido e apresentado pelo Tiago Leifert, na Rede Globo. Nerds também são divertidos e criativos, isso é resultado da exposição prolongada à produção criativa.

“Nerds crescem, se reproduzem e enchem o mundo de cogumelos e pokémons”, disse entre risos o sr. Jair, pai de uma moça nerd muito inteligente, que já terminou o mestrado e tem apenas 26 anos. Ele tem uma visão bem-humorada de quem os nerds são e do que devem e podem fazer: “Minha filha sempre foi e ainda é nerd, fez cosplay quando mais nova, hoje ela estuda muito. Sua área de estudo não é nerd, mas poderia ser. Biologia sempre pode criar aberrações radioativas, não é?”, completou, sempre rindo muito. Ele explicou que - pasmem - os cientistas loucos sempre foram os ídolos dela.

Mas ainda existem alguns (poucos) corajosos. Ou melhor, corajosas. Duas das entrevistadas para esta matéria não apenas concederam autorização para identifica-las, mas usar suas fotos, dando assim rosto àqueles que sofrem dentro da comunidade nerd-geek.

Prhyscilla Rodrigues. - Foto: Arquivo Pessoal

Prhyscilla tem 25 anos e jogou RPG dos 17 aos 22. “Me afastei desse meio principalmente por conta das piadas machistas - fui a única mulher jogando com 6, 7 homens por muito tempo”, declara a jovem. “Comecei a ler HQs a pouco tempo e percebi que homens nerds quase nunca tem paciência pra explicar algo pra mulher. E mais, quando você mostra saber mais sobre o assunto, eles rapidamente te tratam mal. Já fui chamada de “puta” [em discussão nos comentários] na página Legião de Heróis do facebook”, desabafa. Ana Luiza, de 24, fala sobre o mundo de games on-line. “Já passei por experiências desagradáveis jogando OW (Overwatch)”, lembrou. “Muitos amigos já me desrespeitaram de diversas formas em jogos e papos, escondidos na frase

Ana Luiza. - Foto: Arquivo Pessoal

clássica ‘estou só brincando’. Eu imaginava que os nerds, por já terem sido(e ainda serem) a minoria discriminada seriam mais abertos e receptivos a outras minorias.” Seu relato, em certo ponto, assume um tom triste, ao falar do hábito da sociedade de tratar as mulheres como objetos, seres “não tão inteligentes quanto os homens. “Somos levadas sempre como personagens ‘café com leite’. Nossas decisões e opiniões são tratadas como inferiores, pois sempre associam que temos menos conhecimento sobre a maioria dos assuntos”, finaliza.

Do que o nerd pode ter orgulho, então? Em Preacher, um dos quadrinhos mais politicamente incorretos de todos os tempos, inesperadamente há um conselho que deve ser levado para a vida: “Você tem que ser um dos caras bons, porque já existem muito caras maus por aí”. É uma mensagem que sintetiza o que deveria ser o orgulho nerd. Não um monte de tribos de visões diferentes que só se veem em eventos. Crescer leva a perder a inocência da juventude, criando indivíduos - cada vez mais individualistas e preocupados com bens materiais. Deixa-se de lado os mundos mágicos dos jogos, quadrinhos e desenhos animados, coisas que eram consideradas objetos infantis. O nerd mantém parte dessa inocência, conserva os valores daquelas obras que ele tanto ama, é capaz de pensar primeiro no outro, vai tentar ser tão bom - competente, digno, honrado - quanto seu herói favorito. Lembre dos heróis clássicos, como Homem-Aranha ou Luke Skywalker, Obi-wan e a princesa Leia, Jean Grey e o professor X. A maioria deles são pessoas incorruptíveis e bondosas, que colocam o outro à frente deles mesmos. “Eu sempre pensei que se eu ganhasse superpoderes, eu viraria um herói e ajudaria ou outros”, declarou um blogueiro. “Hoje, porém, com tantos problemas na vida e contas para pagar, não sei se seria tão altruísta assim. Antes, eu queria ser o Superman, hoje fico feliz se conseguir ser pelo menos o Clark Kent.”

Essas histórias não são divulgadas e seus protagonistas preferem fingir que não aconteceu nada. O medo envolve todas as camadas e todos os tipos de preconceito - com os nerds e geeks não seria diferente. São histórias contadas somente aos amigos e familiares mais próximos, em quem eles podem confiar. Acontece aqui o mesmo que acontece com as vítimas de racismo, homofobia, xenofobia, entre outros - as pessoas não se sentem confortáveis em denunciar o agressor. Algumas vezes acabam desenvolvendo um sentido de culpabilidade, como se seus gostos e preferências realmente fossem infantis, errôneos. Quando se chega nesse extremo, a depressão vem junto, e eles acabam por se afastar não apenas de seus amigos, mas da sociedade inteira. Isso é deveras perigoso - “hikikomori” é uma forma grave de exclusão social que atinge principalmente os mais jovens, com idade entre 15 e 39 anos. Não só esse preconceito contra os nerds deve ser combatido, mas dentro do mundo geek deve-se atentar para o machismo, a homofobia, entre outros. Assim, um dia, será possível que nerds não sejam mais excluídos ou queiram se excluir por medo de sofrer algum tipo de agressão - e que também parem de cometê-as.

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